Fonte: Anderson Vieira | Agência Senado
A relação entre patroas e empregadas ainda é marcada por racismo, informalidade e exploração
Por Leila Cangussu | ICL Notícias
Se você parar para pensar no que mudou de fato nas relações de trabalho doméstico no Brasil nos últimos cem anos, talvez se surpreenda com a resposta. A formalização ainda é exceção. O respeito aos direitos ainda depende de sorte. E o discurso afetivo segue sendo o maior escudo da exploração.
Mesmo com decisões judiciais, leis específicas e plataformas digitais para facilitar o registro, o trabalho doméstico segue sendo um campo onde o racismo estrutural, o machismo e o elitismo operam juntos para manter uma lógica antiga viva: a de que algumas pessoas existem para servir.
Neste artigo, você vai entender por que o trabalho doméstico continua sendo uma das formas mais perversas de reprodução da desigualdade no Brasil. Vamos percorrer as origens escravocratas dessa função, analisar os dados atuais sobre formalização e direitos, e discutir por que o discurso da “quase da família” ainda é tão usado para naturalizar abusos.
O caso envolvendo uma atriz famosa e sua ex-cozinheira ajuda a mostrar o quanto essa estrutura se repete, com ou sem holofotes. A questão não é individual. É social.
Quando a “quase da família” decide recorrer à Justiça
Ela trabalhou mais de 12 horas por dia. Sem registro de ponto. Sem os intervalos exigidos por lei. E saiu de lá com a promessa de que era “quase da família”. Mas foi à Justiça e venceu.
Denize Bandeira processou uma das atrizes mais conhecidas do país e obteve uma vitória rara. A Justiça reconheceu seu direito a mais de R$ 500 mil em indenização. O valor cobre horas extras, adicional noturno, intervalos não concedidos e descontos irregulares. Não foi presente. Foi reparação. A defesa tentou recorrer, mas o recurso foi recusado por erro técnico.
O caso ganhou espaço na imprensa. Mas não é exceção. É só mais um exemplo do que milhares de trabalhadoras enfrentam todos os dias, longe dos holofotes.
O trabalho doméstico ainda carrega a herança da escravidão
O trabalho doméstico é uma das heranças mais visíveis da escravidão no Brasil. Mulheres negras foram historicamente empurradas para esse tipo de serviço desde o período colonial. Durante a escravidão, havia uma separação entre os “escravos de dentro” e os “escravos de fora”. Os primeiros, geralmente mulheres, cuidavam da casa, da comida, das crianças brancas. Esse modelo foi naturalizado e se arrastou até hoje.
Depois da abolição, o Brasil não promoveu políticas de inserção social ou econômica para as pessoas negras. O que aconteceu foi uma transição não declarada: da senzala para o quarto de empregada. A elite manteve o conforto. E as trabalhadoras, agora “livres”, seguiram servindo.
Segundo dados do IBGE:
- 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres
- 65% são negras
- Quase 40% ainda trabalham sem carteira assinada
Esses números não são coincidência. Eles são sintoma.
A CLT ignorou as domésticas por décadas
A Consolidação das Leis do Trabalho, criada em 1943, deixou as trabalhadoras domésticas de fora. A justificativa era de que o trabalho dentro de residências tinha características diferentes e, por isso, não poderia ser regulado da mesma forma que o trabalho nas empresas. O resultado prático foi manter milhões de mulheres fora da proteção legal por mais de 70 anos.
Somente em 1972 surgiu a primeira tentativa de regulamentação. Ainda assim, os direitos eram muito restritos. O salto mais importante veio com a chamada PEC das Domésticas, aprovada em 2013. Essa Proposta de Emenda Constitucional reconheceu o vínculo empregatício e estendeu diversos direitos. Em 2015, a Lei Complementar 150 regulamentou a aplicação desses direitos.
Mesmo assim, a formalização ainda é baixa. Muita gente ainda prefere manter tudo na informalidade. E muitas trabalhadoras, por medo ou necessidade, aceitam.
O mito da “quase da família”
Você já ouviu alguém dizer que a empregada “é como da família”? Essa frase, que parece elogiosa, costuma esconder uma lógica de submissão. Se a trabalhadora é “como da casa”, espera-se que ela se comporte com gratidão. Que aceite o que for oferecido. Que não cobre direitos. Que não reclame.
Essa construção afetiva funciona como um modo de silenciar. Não há contrato claro. Não há horário fixo. Não há limites. O afeto, nesse contexto, serve para manter a hierarquia sem parecer autoritária.
Pesquisadores analisam essa relação como uma herança direta da ideia da mucama fiel. Aquela que não tem vida própria. Que vive para servir. Que está sempre disponível. Que não questiona. A figura da “quase da família” é uma ficção útil para quem explora.
Na prática:
- Muitas trabalhadoras moram no local de trabalho
- São chamadas a qualquer hora do dia ou da noite
- Fazem tarefas que extrapolam o combinado
- Não têm controle sobre seus horários ou descanso

eSocial doméstico: a lei existe
Desde 2015, empregadores domésticos têm acesso a uma plataforma pública chamada eSocial. Ela permite formalizar o contrato, registrar pagamentos, recolher impostos, pagar o FGTS e cumprir a legislação.
Só que pouca gente usa corretamente. Menos de 30% dos empregadores cumprem integralmente as obrigações no eSocial. Muitos fazem o registro inicial, mas deixam de pagar encargos. Outros ignoram completamente. Preferem pagar “por fora” e manter a relação no improviso.
Esse comportamento não é só irresponsável. É ilegal. Mas é também sintoma de uma cultura de impunidade. Em poucos setores da economia é tão comum e aceito o descumprimento da lei.
O caso não é isolado: é estrutura
Quando uma celebridade aparece envolvida em uma ação judicial por exploração trabalhista, o assunto vira notícia. Mas a estrutura é a mesma em milhares de casas Brasil afora. O problema é social. E está enraizado na ideia de que quem tem dinheiro pode mandar. E quem serve deve aceitar.
Quantas famílias de classe média mantêm empregadas em tempo integral, sem contrato, sem recolhimento de INSS, sem férias, sem direitos? Quantas usam o discurso da confiança para justificar a ausência de vínculo formal?
É nesse ponto que você precisa refletir. A lógica da servidão está viva. E ela se atualiza todos os dias, com novas roupagens, mas a mesma essência: desigualdade, hierarquia, racismo.
Quem são as trabalhadoras domésticas no Brasil?
A maioria das pessoas contratadas para trabalhar em residências brasileiras são mulheres negras. Essa maioria não acontece por acaso. É o resultado de séculos de exclusão da população negra das oportunidades educacionais e profissionais.
Dados do IPEA e do IBGE mostram que:
- Trabalhadoras domésticas recebem, em média, menos da metade do salário de uma trabalhadora formal com funções semelhantes
- Quase metade não tem acesso a direitos básicos como FGTS e INSS
- O nível de escolaridade é menor porque, historicamente, essas mulheres foram retiradas do sistema educacional para trabalhar
Esses dados são reflexo de um projeto de país que sempre tratou as pessoas negras como descartáveis ou subalternas. E de um modelo de desenvolvimento que só se sustenta porque alguém limpa, cozinha, cuida dos filhos e permanece invisível.
O papel do Estado e da sociedade
Durante décadas, o Estado brasileiro atuou como cúmplice dessa exploração. Ao excluir as domésticas da CLT, ao não fiscalizar com rigor o setor, ao permitir que acordos informais substituíssem a legislação, o poder público ajudou a consolidar uma cultura de impunidade.
Nos últimos anos, houve avanços importantes:
- PEC das Domésticas (2013)
- Lei Complementar 150 (2015)
- Criação do eSocial doméstico.
Mas ainda falta fiscalização. Falta campanha de conscientização. Falta punição para quem insiste em manter relações abusivas.
Do lado da sociedade, o desafio é cultural. É entender que contratar uma empregada doméstica não te coloca numa posição de superioridade. Que o respeito não depende de afeto, mas de direitos. E que não há relação de confiança que justifique a violação da dignidade de alguém.
O que você pode fazer?
- Formalize o contrato: não basta pagar em dia. É preciso registrar a carteira, recolher o INSS, pagar o FGTS, respeitar a jornada e oferecer férias.
- Use o eSocial doméstico: a ferramenta está disponível e é simples de usar. Evitar o uso é uma escolha que prejudica quem trabalha.
- Respeite a função profissional: evite misturar tarefas, ampliar demandas ou desrespeitar horários sob a justificativa de “proximidade”.
- Reflita sobre o modelo de contratação: precisa mesmo de uma funcionária em tempo integral? Ou seria mais justo e viável contratar diaristas, com contratos claros e limites definidos?
- Apoie organizações de trabalhadoras domésticas: fortaleça sindicatos, conheça figuras históricas como Laudelina de Campos Mello, Creuza Oliveira, Benedita da Silva. Essas mulheres enfrentaram o sistema e abriram caminho para outras.
- Converse com outras pessoas sobre isso: traga o tema para rodas de conversa, redes sociais, ambientes familiares. A mudança também passa pelo debate público.

O trabalho doméstico precisa sair da lógica da servidão
O trabalho doméstico é uma das formas mais antigas de reprodução da desigualdade no Brasil. Você vive em um país onde ainda é comum que mulheres negras passem a vida servindo outras famílias, em condições precárias, sob um discurso de afeto que esconde violência estrutural.
O caso de Denize Bandeira é emblemático, mas está longe de ser único. Ele mostra que a Justiça pode funcionar. Mas também escancara o quanto é raro alguém chegar até lá. A maioria nem tenta. E quando tenta, é desacreditada.
Se você se importa com justiça social, não basta denunciar a desigualdade nas redes. É preciso começar pela base. Pelo cotidiano. Pelo que acontece dentro das casas. O futuro que você quer passa pelo tipo de relação que você constrói com quem trabalha com você. O trabalho doméstico precisa deixar de ser sinônimo de servidão. E virar, de fato, trabalho.
A estrutura só muda quando você encara o problema.
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Data original de publicação: 26 de Junho de 2025